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19 de junho de 2024

Da responsabilidade dos provedores de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros

ANÁLISE DOS ARTIGOS 18 A 21 DO MARCO CIVIL DA INTERNET

Por: Marcelo Perreira Vaz

A Lei 12.965/2014 – Marco Civil da Internet estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria, conforme disposto no artigo 1º:

Art. 1º Esta Lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria.

Referida Lei prevê no artigo 3º [1], como princípios que regulam o uso da internet no Brasil, dentre outros, o princípio da proteção da privacidade, dos dados pessoais e da responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, assegurando no artigo 7º[2], como direitos e garantias dos usuários de internet, a   inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações e inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial.

O Marco Civil da Internet foi uma inovação no Direito Brasileiro e estabeleceu limites e condições para que os provedores fossem responsabilizados, balizando a liberdade de expressão, privacidade dos usuários e responsabilidade legal das plataformas digitais.

Nesse sentido, os artigos 18 a 21 da Lei, estabelecem importantes diretrizes sobre a responsabilidade dos provedores de internet pelos danos causados aos usuários em razão do conteúdo gerado por terceiros.

O artigo 18, por exemplo, aduz que “o provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”, enquanto o artigo 19 determina que o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado pelos danos de conteúdo gerados por terceiro se não tornar indisponível conteúdo apontado como infringente, por ordem judicial específica.

Veja que o Marco Civil da Internet faz nesse caso uma distinção entre os provedores de conexão com os provedores de aplicação de internet. Enquanto os de conexão foram isentos de responsabilidade pelo conteúdo gerado por terceiros, os de aplicação de internet somente poderão ser responsabilizados civilmente quando não acatarem ordem judicial específica que determina a indisponibilidade do conteúdo tido como infringente.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de Repercussão Geral sobre essa matéria que é objeto do Recurso Extraordinário 1.037.396, onde o STF, por maioria, reputou constitucional a questão, reconhecendo a existência de repercussão geral (Tema 987), onde define-se a constitucionalidade do artigo 19:

TEMA 987 – Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.

O Recurso foi interposto pelo Facebook Brasil contra decisão do Colégio Recursal de Piracicaba/SP. No caso, o Juizado de Capivari/SP deferiu apenas a obrigação de fazer para exclusão do perfil e fornecimento do IP, rejeitando o pleito indenizatório. A sentença foi fundamentada no artigo 19 do Marco Civil da Internet, no entanto, no julgamento de recurso inominado, a turma recursal deferiu indenização no valor de R$ 10 mil, entendendo que condicionar a retirada do perfil falso à ordem judicial específica significaria isentar os provedores de aplicações de toda e qualquer responsabilidade indenizatória, contrariando o sistema protetivo do Código de Defesa do Consumidor e o artigo 5°, inciso XXXII, da Constituição Federal, que versa sobre o dever de indenizar.

Nesse sentido, destaco breve trecho do artigo publicado pela ex-ministra do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie, denominado “O Marco Civil da Internet Sob o Prisma da Constitucionalidade[3]:

“7. A responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana decorre de dano causado a alguém, sem que exista qualquer liame obrigacional anterior entre agente e vítima. A obrigação de indenizar, nesses casos, depende da imputação de culpa a quem arcará com a indenização. Na lição de Rui Stoco, “a responsabilidade extracontratual no Direito brasileiro, conforme doutrina pacífica, funda-se no princípio da culpa”.

A sede básica da responsabilidade extracontratual está prevista no artigo 186 do Código Civil, que assim dispõe: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

O artigo 927 do Código Civil, por sua vez, explicita a obrigatoriedade de reparação do dano. In verbis: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

Deste modo, o autor do ato ilícito responderá civilmente pelos prejuízos causados, cabendo ao lesado o ônus de provar a infração da norma (ato ilícito), o dano e o nexo de causalidade.

Segundo doutrina tradicional, o conceito de ato ilícito utilizado pelo Código Civil brasileiro, como fundamento da responsabilidade contratual e extracontratual, corresponde à debatida faute do artigo 1.382 do Código Civil francês, devendo ser compreendida essa expressão em sua acepção de erro, ou, em uma tradução literal, de “falta”, e não no sentido de culpa, que é o estado moral de quem pratica o ato ilícito.

A responsabilidade civil dos provedores de aplicação de internet, pelo conteúdo gerado e compartilhado por seus usuários é objeto de dois temas reconhecidos como de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal. O primeiro é o Tema 533, que tratou da responsabilidade, antes da entrada em vigor do Marco Civil da Internet, em 2014. Veja-se: “Tema 533 – Dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário (relator ministro Luiz Fux, RE 1.057.258)”. O segundo caso é o Tema 987, citado acima, que ainda está pendente de decisão. Veja-se: “Tema 987 – Discussão sobre a constitucionalidade do artigo 19 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros (relator ministro Dias Toffoli, RE 1.037.396).

Antes da Lei do Marco Civil, a tendência da jurisprudência pátria estava orientada no sentido de admitir que todo dano deveria ser ressarcido pelos provedores de aplicação que não atendessem à solicitação do lesado, bastando que o usuário noticiasse a ocorrência do incidente, por intermédio do próprio serviço (provedor de aplicação), solicitando a remoção imediata do conteúdo. A partir do Marco Civil, a responsabilização do provedor de aplicação por não remoção do conteúdo passa a depender de decisão judicial específica e fundamentada e, portanto, os provedores de aplicação só incorrem em responsabilidade subsidiária nas hipóteses em que, após ciência de ordem judicial, mantêm-se inertes ou omissos”.

Noutras palavras, segundo a ex-ministra, diferentemente do que estabeleceu a Lei do Marco Civil da Internet, a responsabilidade civil extracontratual no Direito Brasileiro acaba sendo aquela que, surge de danos causados sem uma relação obrigacional prévia, baseando-se no princípio da culpa. O Código Civil prevê que os atos ilícitos, previstos nos artigos 186 e 187[4], são aqueles decorrentes de ações ou omissões que violem direitos e causem prejuízos, criando uma obrigatoriedade de indenização à vítima.  Já a responsabilidade civil dos provedores de internet, por outro lado, diverge da obrigação trazida pelo Código Civil ao prever que a responsabilidade dos provedores por danos causados ou por conteúdos postados por usuários sem que houvesse uma decisão judicial dependerá de uma decisão judicial que não seja cumprida pelos provedores.

Caso importante a destacar nesse sentido é que o Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso Especial 2096147/SP afastou a aplicação da responsabilidade prevista no artigo 19 do Marco Civil da Internet ao argumento de que nos atos de concorrência de desleal, a análise da responsabilidade dos provedores de internet no mercado dos links patrocinados não pode ser baseada apenas no conteúdo gerado no site patrocinado, mas sim na forma como o provedor de pesquisa comercializa os serviços publicitários ao apresentar resultados que fomentem a concorrência parasitária e confundam o consumidor.

No caso em questão, que tratava de concorrência desleal e parasitária, o STJ entendeu que no mercado de links patrocinados, o provedor de pesquisa não seria um mero hospedeiro do conteúdo gerado por terceiros, mas um fornecedor de serviços de publicidade digital que possam configurar atos de concorrência desleal, destacando, ainda, que o provedor concorre à causa do ato danoso de indenizar por colaborar para a prática de conduta desleal pela forma como comercializa seus serviços publicitários e pelos resultados apresentados que fomentam a concorrência parasitária e confundam o consumidor.

Em sequência, o artigo 20 da Lei estabelece que “sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário”; enquanto que o parágrafo único aduz que “quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos substituirá o conteúdo tornado indisponível pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização”.

Por fim, o artigo 21 trata da responsabilidade pela disponibilização de conteúdo gerado por terceiros que tenha materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover a indisponibilização desse conteúdo.

Note que nesse caso, não se faz necessária a decisão judicial, uma vez que o legislador foi claro ao estabelecer que basta uma singela notificação enviada pela vítima ao provedor para que esse, caso não indisponibilize o conteúdo, possa ser responsabilizado.

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça vem formando jurisprudência de que a responsabilidade dos provedores pelos danos materiais e morais se dá após a ordem judicial específica, ao argumento de que a divulgação de conteúdo pornográfico na internet, embora configure ato ilícito passível de reparação jurídica, não tem o condão de excepcionar a reserva de jurisdição.

Vejamos breve trecho da ementa:

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. DIVULGAÇÃO DE FOTOGRAFIAS DE NUDEZ (PRODUZIDAS E CEDIDAS COM FINS COMERCIAIS) SEM O CONSENTIMENTO DA MODELO RETRATADA, EM ENDEREÇOS ELETRÔNICOS DA INTERNET. RESPONSABILIDADE DO PROVEDOR PARA PROMOVER A RETIRADA DO CONTEÚDO INDICADO A PARTIR DA DETERMINAÇÃO JUDICIAL PARA TANTO. ART. 21 DO MARCO CIVIL DA INTERNET. INAPLICABILIDADE. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. […]

As imagens íntimas produzidas e cedidas com fins comerciais – a esvaziar por completo sua natureza privada e reservada – não se amoldam ao espectro normativo (e protetivo) do art. 21 do Marco Civil da Internet, que excepciona a regra de reserva da jurisdição.

Sua divulgação, na rede mundial de computadores, sem autorização da pessoa reproduzida, por evidente, consubstancia ato ilícito passível de proteção jurídica, mas não tem o condão de excepcionar a reserva de jurisdição (que se presume constitucional, até declaração em contrário pelo Supremo Tribunal Federal) .

A proteção, legitimamente vindicada pela demandante, sobre o material fotográfico de conteúdo íntimo, produzido comercialmente e divulgado por terceiros sem a sua autorização, destina-se a evitar/reparar uma lesão de cunho primordialmente patrimonial à autora (especificamente, os alegados lucros cessantes) e, apenas indiretamente, a sua intimidade

A responsabilidade subsidiária do provedor pelos danos materiais e morais apenas se dá após ordem judicial específica e em caso de descumprimento, o que, na hipótese dos autos, não se verificou.” (STJ, REsp n. 2.025.712/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 24/3/2023).

Veja que neste caso (Recurso Especial 2025712/SP), o Superior Tribunal de Justiça não aplicou o artigo 21 do Marco Civil da Internet, mesmo reconhecendo que a necessidade de reparação pelos danos advindos de divulgação na internet de conteúdo íntimo, reconhecendo que a responsabilidade do provedor se dá após a ordem judicial específica e em caso de seu descumprimento, mas não em razão da notificação extrajudicial.

Sendo assim, é claro que a aplicação do Marco Civil da Internet ainda depende de uniformidade de entendimento dos Tribunais e da declaração de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal do artigo 19, trazendo avanços significativos na regulamentação da internet no Brasil e equilibrando a liberdade de expressão com a proteção contra abusos.

[1] Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:
I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;
II – proteção da privacidade;
III – proteção dos dados pessoais, na forma da lei;
IV – preservação e garantia da neutralidade de rede;
V – preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas;
VI – responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei;
VII – preservação da natureza participativa da rede;
VIII – liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei.
[2] Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
II – inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;
III – inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial;
IV – não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização;
V – manutenção da qualidade contratada da conexão à internet;
VI – informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de internet, bem como sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade;
VII – não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei;
VIII – informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades que:
  1. a) justifiquem sua coleta;
  2. b) não sejam vedadas pela legislação; e
  3. c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de aplicações de internet;
IX – consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais;
X – exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei e na que dispõe sobre a proteção de dados pessoais;
XI – publicidade e clareza de eventuais políticas de uso dos provedores de conexão à internet e de aplicações de internet;
XII – acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, nos termos da lei; e
XIII – aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet.
[3] Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-fev-19/ellen-gracie-constitucionalidade-marco-civil-internet/ (Acesso em 01/05/2024)
[4] Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.