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23 de maio de 2024

Consequências do julgamento do REsp 1820873 para negócios imobiliários com dívidas tributárias

Por: Guilherme Zucoloto

Uma decisão recente do STJ aumentou significativamente a necessidade de due diligence por parte dos compradores de imóveis, tornando as transações imobiliárias mais arriscadas do que nunca.

Aqueles que possuem certa intimidade com o mercado imobiliário e com a compra e venda de imóveis sempre conheceram a necessidade da realização da due diligence, que nada mais é do que uma varredura “documental” no imóvel que se pretende adquirir, a fim de se verificar eventuais riscos atrelados ao negócio ou ao imóvel. No entanto, os riscos sempre foram “controlados” e previsíveis por mera análise da certidão de matrícula junto ao Cartório de Registro de Imóveis correspondente, além de certidões de distribuições judiciais.

Ao julgar o REsp 1820873/RS, em decisão recente, foi estabelecido perigoso precedente pelo STJ que, embora previsto em lei, muitos acreditavam – e de certa forma ainda acreditam – em interpretação e aplicação com toques de razoabilidade.

Explico: bens que compusessem o patrimônio de eventual devedor junto ao Fisco, em razão de dívidas de natureza tributária, sempre estiveram suscetíveis à possibilidade de atos constritivos – como penhora e adjudicação – em caso de ajuizamento de ações de execuções fiscais.

Neste sentido, a tese que prevaleceu, desde o advento do Código Tributário Nacional, em meados dos anos 60, foi no sentido de que apenas alienações de imóveis após válida citação em ação de execução fiscal deveriam ser consideradas fraudulentas, e, por consequência, declaradas nulas, com retorno da propriedade do imóvel ao devedor, como forma de viabilizar eventual garantia à dívida fiscal executada. Este entendimento prevaleceu até meados do ano de 2005.

Isto porque, com o advento da Lei Complementar 118/2005 houve alteração no CTN que culminou com a inclusão de dispositivo expresso em seu artigo 185, de presunção de fraude a todo e qualquer ato jurídico de oneração de bens ou rendas, ocorridas após regular inscrição de dívida ativa:

Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita.

Nota-se, que houve alteração do termo inicial a ser considerado o ato fraudulento, transferindo-o de atos “após citação em processo judicial”, para “após inscrição em dívida ativa”, criando-se, portanto, clara “presunção de fraude”.

Tal presunção apresentou-se ao mundo jurídico tributário como exagero jurídico e clara afronta ao princípio da publicidade, da razoabilidade e de certa forma até ao princípio do não confisco.

Em razão do notável absurdo (em interpretação própria e pessoal), a interpretação mais arrazoada dada ao mencionado artigo deveria ser estabelecida no sentido de que a citada presunção deveria ser relativa, deixando aberto, portanto, a possibilidade de análise, in concreto, de boa-fé e idoneidade do ato.

Neste sentido, cabe mencionar que o artigo utilizou a expressão “presume-se fraudulenta”, utilizando claramente a terminologia de “presunção” afastando qualquer tipo terminologia taxativa; caso em que teria utilizado “será considerada fraudulenta” ou “deverá ser declarada fraudulenta”, vinculando assim o julgador.

Portanto, nota-se que a terminologia escolhida pelo legislador deixou aberta janela de interpretação, que vinha sendo explorada pelos causídicos, na tentativa de demonstrar a idoneidade dos atos jurídicos, como forma a evitar prejuízo a terceiros adquirentes de boa-fé e a manutenção de negócios já consolidados.

Em recentíssima decisão proferida em AgInt no REsp 1820873/RS, o Ministro Benedito Gonçalves jogou um balde d’agua fria em toda a comunidade jurídica, ao negar a análise de idoneidade (em absoluto) do ato jurídico e da boa-fé do adquirente no caso em concreto, considerando, portanto, a presunção trazida pelo dispositivo legal absoluta e inafastável:

(…)

  1. Nesse contexto, não há porque se averiguar a eventual boa-fé do adquirente, se ocorrida a hipótese legal caracterizadora da fraude, a qual só pode ser excepcionada no caso de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita.

(…)

O Excelso Julgador constou, na mencionada decisão, que apenas seria afastada a presunção de fraude na hipótese excepcionada no parágrafo único do art. 185, no entanto, com a devida escusa à intepretação dada pelo Ministro, citado dispositivo em momento algum utiliza terminologias taxativas, como única hipótese excepcionada, ou seja, considerá-lo como hipótese taxativa parece interpretação extensiva demasiadamente onerosa e prejudicial ao contribuinte.

Não pode ser desconsiderado – como fez o Julgador – o fato de que inscrição de dívida ativa corresponde a ato com publicidade restrita, sendo que, na maioria das vezes, sequer a dívida ativa gera qualquer tipo de inscrição ou apontamento em eventuais bens pesquisados, sendo necessário para eventual conhecimento, não apenas due diligence nos imóveis, mas especificamente acerca da vida pessoal do proprietário, e, além disso, de forma ainda mais especifica, junto a cadastros administrativos dos mais variados entes federativos.

Seria o caso, por exemplo, de um proprietário de um imóvel na cidade de São Paulo/SP, que possuísse dívidas fiscais perante o município de Salvador/BA. Neste exemplo apresentado, caso a eventual dívida junto ao município de Salvador estivesse inscrita em dívida ativa, esta dívida não geraria qualquer apontamento ou constrição no imóvel da cidade de São Paulo.

Em hipotética alienação deste imóvel a um terceiro de boa-fé na cidade de São Paulo, mesmo sem qualquer apontamento na matrícula, ou apontamento judicial, este ato jurídico, posteriormente assim alegado pela Procuradoria do município de Salvador, seria declarado inteiramente nulo, por transmissão fraudulenta, sem qualquer tipo de análise de boa-fé ou regularidade do ato, eis que, segundo mencionada interpretação, seria o ato considerado fraudulento!

Evidente, assim, que eventual adquirente (ou adquirentes, em relações sucessivas em cadeia) de boa-fé, sem qualquer conhecimento prévio da situação de devedor do alienante, seria penalizado por ato jurídico perfeito e acabado, em razão de fato restrito, que não poderia ter conhecimento, sem due diligence extensivo na vida do alienante, junto aos órgãos governamentais das mais variadas esferas da federação.

A situação se mostra ainda mais preocupante quando são analisadas hipóteses de vendas em cadeia, onde imóveis são vendidos de forma sucessiva, ocasião em que adquirente se torna alienante perante o próximo adquirente da cadeia. Nesta situação, o due diligence teria que ser realizado perante a vida pessoal de todos aqueles que, em determinado momento, foram proprietários do imóvel, e junto a todas as esferas federativas da União, para se averiguar existência de dívida ativa inscrita.

Com a devida vênia ao entendimento proferido pelo Ministro, parece decisão desarrazoada, que penaliza terceiros por atos idôneos (até onde se tinha conhecimento) e traz insegurança jurídica tremenda aos negócios imobiliários, estabelecendo necessidade de maior burocracia quando da realização destes, em um dos países com mais entraves burocráticos do mundo.

Ainda não pode ser considerada decisão com efeitos vinculantes, ou muito menos com efeitos erga omnes, no entanto, precedente perigoso foi estabelecido – e não pode ser desconsiderado – que estremecerá as bases do que se tem por razoável no direito tributário e afetará de forma expressiva as transações imobiliárias.