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11 de dezembro de 2024

A relativização da anterioridade do crédito em fraudes contra credores

Por: Guilherme Felipe Pereira

A fraude contra credores, disciplinada no artigo 158 do Código Civil, ocorre quando o devedor pratica atos que visam retirar bens de seu patrimônio para frustrar a satisfação de dívidas, prejudicando o credor. Tradicionalmente, o reconhecimento dessa fraude exige que o crédito seja anterior ao ato jurídico questionado, sendo esse requisito um dos elementos fundamentais para a procedência de uma ação pauliana. Contudo, a jurisprudência brasileira, acompanhando a evolução das relações comerciais e patrimoniais, tem admitido a relativização desse requisito em situações específicas, especialmente quando configurada a chamada fraude predeterminada.

A fraude predeterminada se caracteriza pela realização de atos patrimoniais planejados com a finalidade de prejudicar credores futuros. Nesses casos, o devedor, prevendo a contração de dívidas ou o inadimplemento de obrigações, dispõe de seus bens de maneira estratégica para se tornar insolvente ou dificultar a execução de seus débitos. Trata-se de uma conduta premeditada que busca criar um ambiente de blindagem patrimonial antes mesmo da constituição formal do crédito. Nesse contexto, a literalidade do requisito de anterioridade do crédito, exigido pelo artigo 158, pode ser flexibilizado.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em diversas ocasiões, reconheceu a possibilidade de relativização da anterioridade do crédito quando comprovada a fraude predeterminada. No julgamento do REsp 1.324.308/PR. e REsp n. 1.092.134/SP., a Corte decidiu que atos realizados com o intuito de frustrar obrigações futuras podem ser considerados fraudulentos mesmo sem a existência de um crédito anterior. Nesse caso, o STJ entendeu que a dinâmica das relações econômicas e a criatividade dos devedores em ocultar bens não podem ser obstáculos à proteção dos credores. Essa interpretação encontra eco em precedentes dos Tribunais de Justiça, onde se concluiu que a doação de bens a familiares, realizada em estado de pré-insolvência e pouco antes da constituição formal do crédito, era ineficaz perante os credores.

A relativização da anterioridade não significa, contudo, a anulação automática dos atos praticados. O ato jurídico permanece válido, mas torna-se ineficaz em relação ao credor lesado. Isso preserva os direitos de terceiros de boa-fé, enquanto assegura ao credor o direito de buscar a execução sobre os bens transferidos de forma fraudulenta. Além disso, a medida é reversível, restringindo-se à proteção do crédito lesado sem que isso implique em um retorno completo dos bens ao patrimônio do devedor.

Essa flexibilização tem grande importância prática, especialmente em um cenário em que fraudes patrimoniais se tornam mais complexas e elaboradas. Devedores utilizam estratégias sofisticadas, como alienações sucessivas ou transferências a empresas de familiares, para evitar que seus bens sejam alcançados em ações de execução ou paulianas. A relativização da anterioridade surge, assim, como um instrumento essencial para impedir que o formalismo jurídico se torne um obstáculo à efetividade da tutela dos credores.

Em contrapartida, essa abordagem exige cautela. A relativização somente pode ser aplicada em casos onde haja prova robusta de que o ato fraudulento foi predeterminado, ou seja, que sua finalidade era frustrar obrigações futuras de forma deliberada. Sem essa comprovação, a segurança jurídica pode ser comprometida, o que reforça a importância de um trabalho técnico e detalhado na análise das provas.

Dessa forma, o tratamento jurídico da fraude contra credores, especialmente sob a perspectiva da relativização da anterioridade, mostra-se um mecanismo indispensável para o equilíbrio entre o dinamismo das relações patrimoniais e a proteção dos direitos dos credores. Essa evolução jurisprudencial reflete o esforço do Judiciário em garantir a boa-fé nas relações jurídicas, protegendo a função social do crédito e combatendo práticas abusivas que comprometam a ordem econômica e a segurança dos negócios jurídicos.

Por fim, a relativização da anterioridade do crédito representa uma evolução na proteção dos credores. Essa interpretação mais flexível permite que o Judiciário alcance soluções eficazes contra fraudes sofisticadas, assegurando o princípio da boa-fé e a função social do crédito. Essa evolução jurisprudencial reforça a necessidade de um acompanhamento especializado em casos de disputas patrimoniais, prevenindo abusos e garantindo que os interesses dos credores sejam devidamente resguardados.