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A prescrição nos processos administrativos sancionadores – Uma proposta de regulamentação
Por: Antonio Carlos Verzola
A prescrição, passível de alegação e de reconhecimento tanto nas relações privadas quanto nas públicas, assume especial relevo no âmbito do direito punitivo genericamente considerado, em virtude do maior rigor das penalidades que podem ser aplicadas. Com a edição da Lei 9.873/99 vieram a ser estabelecidas, no contexto do Direito Administrativo Sancionador, regras aplicáveis à toda Administração Pública Federal acerca da prescrição da ação punitiva, quando do exercício do poder de polícia que lhe é inerente. No entanto, passado longo tempo desde a sua incorporação ao regime jurídico-administrativo, a norma ainda carece da devida complementação a fim de elucidar temas que têm causado controvérsias, o que nos parece possível de ser implementado no âmbito dos entes públicos destinatários daquela lei, como nos casos do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários, reguladores do mercado financeiro e do mercado de capitais, respectivamente. Entendemos possível que a matéria seja objeto do devido tratamento em normativo infralegal editado em razão de competência própria, complementando assim e nos limites próprios do regulamento, a lei ora vigente. Nesse sentido, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao tratar da natureza jurídica da atividade regulamentar, lembra que como salientado por Kelsen (Teoria General del Derecho y del Estado, pp. 128-68), a formação do Direito opera-se por graus, e, então, o ato jurídico inferior é execução do superior. Destarte, a lei é execução imediata da Constituição, como o regulamento, da lei. Entende aquele autor que, em consequência, compete ao Executivo adaptar a lei para sua boa aplicação, mediante regulamentos executivos.
A vigente lei sobre prescrição na seara administrativa, logo no seu artigo 1º, caput, suscita a carência quanto ao estabelecimento da espécie de prescrição nele prevista, bem como de sua definição. Remete também, no final de sua redação, à necessidade de firmar, com clareza, o entendimento acerca de infração permanente ou continuada. Verifica-se no primeiro caso, certa confusão entre os aplicadores da norma no sentido de estabelecer, para fins de determinação do prazo prescricional correspondente, se o caso é de prescrição ordinária ou de prescrição intercorrente. Entendemos que a prescrição do caput daquele dispositivo é a chamada ordinária e, via de consequência, o seu prazo quinquenal, só se aplica aos casos em que ainda não houve, por parte da Administração Pública Federal, a formulação de acusação e a consequente instauração do respectivo processo administrativo sancionador. Consequentemente, a prescrição tratada no § 1º, do mesmo artigo é a intercorrente cuja incidência o legislador reservou para os processos já instaurados e em curso e, portanto, com acusação já formulada. No segundo caso, face àquela indefinição, os aplicadores da norma administrativa têm exercido uma discricionariedade descabida e desatrelada do necessário conteúdo jurídico, relativamente à caracterização de infração permanente ou continuada. Assim, sugerimos que seja aplicado, nesse caso, o conceito próprio do direito penal, tendo em vista a similar natureza punitiva. Posto isso, sugerimos texto regulamentar[1] que poderia, como dito, constar de norma infralegal editada por ente público com competência normativa específica, com o intuito de que, na mesma passagem, a disposição eventualmente incorporada ao nosso direito positivo promova a necessária elucidação de ambas as questões, contribuindo para a melhor aplicação da regra prescricional.
No parágrafo primeiro, do mesmo artigo inicial, o texto faz referência a procedimento administrativo pendente de julgamento ou despacho, o que demanda uma definição legal do que seja este último. Isto porque, as decisões na instância administrativa têm sido vacilantes, chegando até a considerar como despachos meras movimentações formais e rotineiras nos ambientes público-administrativos e que acabam por desvirtuar o instituto, perenizando o direito de punir. Vale lembrar que despacho é espécie de ato administrativo e, sempre que os autores tratam do tema, particularmente quando abordam a classificação dos atos administrativos, sempre é mencionado o despacho. Logo, só será despacho o pronunciamento da autoridade administrativa que se amolde à definição de ato administrativo. Exemplificativamente, “ato administrativo é a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeito a controle pelo Poder Judiciário”. (Maria Helena Diniz, Direito Administrativo, Atlas, São Paulo, 15ª ed., 2003, p. 189). No que se refere especificamente ao conceito de despacho e ainda exemplificando, Celso Antonio Bandeira de Mello, na mesma linha uniforme da doutrina diz que “finalmente, mencione-se o ‘despacho’, que, sem ser uma fórmula propriamente dita, é a denominação utilizada para referir decisões finais ou interlocutórias das autoridades em matérias que sejam submetidas à sua apreciação”.. (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, São Paulo, 26ª ed., 2009, p.435). Por força disso e a fim de oferecer ao aplicador da lei elementos que lhe permitam a melhor compreensão em relação à infração permanente ou continuada e o correto entendimento acerca do ato administrativo nominado de despacho, propomos a redação abaixo[2].
Outra disposição controvertida da lei é a trazida pelo parágrafo segundo, também do art. 1º, estabelecendo que quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal. Também em relação à aplicação prática desse preceito, as decisões têm sido díspares, considerando umas que basta o ente público simplesmente informar, como é o seu dever de ofício, ao Ministério Público, normalmente o Federal, sobre um fato que em tese tipificaria crime, para que incida, na esfera administrativa, o prazo prescricional mais longo da lei penal. Outras buscam fundamento na existência de oferecimento de denúncia por parte do Ministério Público como suficiente para determinar o prazo prescricional penal. Há também decisões administrativas pautadas na instauração de ação penal ainda que em curso e, por último, aquelas que exigem decisão penal de primeira instância para a comunicabilidade de prazo prescricional. Enfim, é uma total ausência de uniformidade, o que é certamente despropositado, não isonômico e que gera insegurança jurídica. Ora, fato é que a competência para qualificar uma determinada conduta como ilícito penal é, em nosso ordenamento jurídico processual, inclusive em sede constitucional, do Poder Judiciário, o que leva à conclusão de que alguns dos posicionamentos acima são absolutamente ilegítimos. Recorde-se que a lei posta menciona a hipótese de o fato também constituir crime, e, por certo, não cabe à Administração Pública fazer juízo de valor a esse respeito. Nessa linha, até por aplicação do princípio da razoabilidade, ínsito à Administração Pública, entendemos necessário, para fins de incidência do prazo de prescrição da lei penal, que ao menos tenha sido instaurada a respectiva ação. Nesse momento e depois de exercida a atribuição do Ministério Público, já se teria então uma manifestação formal e própria do Poder Judiciário, ainda que sem definitividade. A fim de contribuir para o deslinde dessa incerteza, sugerimos, diante de hipotética regulamentação, que seja examinado texto proposto a respeito[3].
Uma última discussão que vem atravessando os tempos, passados tantos anos desde a edição da lei prescricional, diz respeito ao entendimento que deve observado em relação a qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato, previsto no inciso II, do seu art. 2º, e que se constitui em uma das possibilidades de interrupção do prazo prescricional. A propósito de apuração do fato, em sede de persecução de ilícito penal ou administrativo, há entendimento unânime considerando que os elementos essenciais para a tipificação de condutas reprováveis nesses âmbitos são a materialidade e a autoria. Diante disso, é também razoável deixar marcado, no direito positivado, que só serão considerados inequívocos para os efeitos da norma prescricional, os atos vinculados à apuração daqueles elementos, quais sejam, autoria e materialidade, conforme sugerimos na redação de eventual norma[4] a respeito.
Finalizando e a propósito da competência normativa infralegal, pode ser entendido que a Comissão de Valores Mobiliários ou o Banco Central do Brasil ou ainda outras entidades administrativas aplicadoras da norma prescricional não tenham competência normativa para explicitá-la em normativo infralegal nas suas respectivas esferas de competência. Nesse caso a matéria seria, em razão de entendimento restrito do conceito de poder regulamentar, de competência do Chefe do Poder Executivo, o que demandaria a necessária diligência por parte de interessados, públicos ou privados, neste último caso por meio de entidades representativas de classes, a fim de provocar a edição de decreto a respeito.
[1] “À prescrição ordinária de que trata o art. 1º, da Lei 9.873/99, de 23 de novembro de 1999, cujo prazo de fluência precede a acusação e instauração de processo administrativo sancionador, serão aplicáveis e estendidos, para efeitos de caracterização de infração permanente ou continuada, os conceitos próprios do direito penal”.
[2] “Para fins de caracterização da prescrição intercorrente prevista no § 1º., do artigo 1º, da Lei 9.873/99, a qual se aplica somente aos processos administrativos sancionadores já instaurados e com acusação formulada, considera-se despacho o ato administrativo emanado de autoridade competente que tenha conteúdo de decisão, inclusive interlocutória.
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Único: Não caracterizam despachos os atos de mera movimentação processual ou de troca de titulares de competências administrativas.”