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O mito da herança “sem imposto”: análise crítica do sistema de 3 holdings e seus riscos fatais
Por: Guilherme Zucoloto
O planejamento sucessório deixou de ser um tema restrito a grandes fortunas para se tornar uma pauta estratégica no âmbito de empresas familiares de todos os portes. A crescente complexidade do inventário judicial e a constante ameaça de reformas tributárias que visam majorar o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) criaram um ambiente fértil para a proliferação de soluções que prometem eficiência e, não raro, uma economia tributária “milagrosa”.
Dentre estas, o chamado “método das 3 células” ou “holding de 3 holdings” ganhou notória popularidade, sendo promovido como uma engenharia societária capaz de transferir patrimônio entre gerações com uma carga fiscal drasticamente reduzida, ou, até mesmo, com uma promessa de transmissão de “herança sem imposto”.
Contudo, uma análise técnica e aprofundada, à luz da legislação vigente e, principalmente, da mais recente jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, revela uma realidade extremamente perigosa. O que se vende como uma solução sofisticada é, na verdade, uma estrutura juridicamente frágil, que expõe o patrimônio familiar a riscos fiscais, financeiros e até mesmo penais muito superiores aos custos de um inventário tradicional.
Neste artigo, pretendemos demonstrar por que o “método das 3 células” não apenas falha em cumprir suas promessas, mas também se tornou obsoleta e insustentável diante do cerco formado pelas autoridades fiscais e pelo Poder Judiciário. Analisaremos, ainda, os caminhos seguros e eficazes para um planejamento sucessório robusto, que preserve o legado e garanta a segurança jurídica para as futuras gerações.
A arquitetura da estratégia e a lógica (frágil) da economia tributária
Para compreender a falha fundamental do método, é preciso entender sua mecânica. A estrutura se baseia na criação de três empresas distintas e interligadas:
- Célula “Cofre”: Os patriarcas constituem uma primeira empresa para a qual transferem seus bens e direitos (imóveis, participações societárias, etc.) através da integralização de capital social. Esta operação, em si, é lícita e comum.
- Célula “Veículo”: Em seguida, os patriarcas constituem uma segunda empresa, a “Veículo”, e integralizam seu capital social não com bens, mas com as quotas que detêm na “Cofre”. O ponto central da manobra reside aqui: apenas uma fração mínima do valor real dessas quotas é registrada como capital social, sendo a vasta maioria lançada como “reserva de capital” a título de ágio. O resultado é uma empresa com um ativo valiosíssimo (o controle da “Cofre”), mas com um capital social artificialmente baixo.
- Célula “Destino”: Por fim, cria-se a terceira empresa, cujos sócios serão os herdeiros. Os patriarcas a constituem com um capital social irrisório em dinheiro e, em ato contínuo, doam as quotas aos herdeiros, geralmente com reserva de usufruto vitalício. A promessa da estratégia é que o ITCMD incidirá apenas sobre o valor ínfimo desta doação.
Para completar o fluxo, a Célula “Destino” (já em nome dos herdeiros) “compra” as quotas da Célula “Veículo” pertencentes aos patriarcas por um valor simbólico, próximo ao seu baixo capital social nominal. Ao final, os herdeiros controlam a “Destino”, que controla a “Veículo”, que, por sua vez, controla a “Cofre”, onde o patrimônio real está alocado. A tese é que a sucessão se efetivou com o pagamento de um imposto calculado sobre uma base mínima.
A desconstrução do método: riscos fiscais, jurídicos e a posição dos tribunais
A aparente engenhosidade da estrutura esconde vulnerabilidades críticas que são facilmente identificadas e combatidas pelas autoridades fiscais. Vejamos.
- Planejamento tributário abusivo e simulação: a ausência de propósito negocial
O pilar de um planejamento tributário lícito (elisão fiscal) é a existência de um propósito negocial. Ou seja, a reorganização societária deve ter uma razão econômica ou comercial genuína, que não seja a mera economia de tributos.
Na estrutura de 3 células, essa razão é inexistente. A criação de uma complexa cadeia de empresas e a utilização de artifícios contábeis não visam otimizar uma operação ou proteger ativos de forma mais eficaz que uma holding tradicional. Seu único e transparente objetivo é dissimular a ocorrência do fato gerador do ITCMD sobre o valor real do patrimônio.
Tal fato enquadra a operação no campo da evasão fiscal. A autoridade fiscal, com amparo no artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN), tem o poder de desconsiderar a forma jurídica dos atos praticados e tributar a operação com base em sua essência econômica.
O Fisco irá, invariavelmente, identificar que o negócio aparente (uma compra e venda de quotas por valor simbólico) encobre o negócio real (uma doação do controle sobre um patrimônio milionário).
A consequência é a autuação fiscal para cobrança do ITCMD sobre o valor de mercado de todo o patrimônio, acrescido de juros e multas punitivas que podem chegar a 100% do imposto devido. Em casos mais graves, a conduta pode ser tipificada como crime contra a ordem tributária, nos termos da Lei nº 8.137/90.
- O golpe fatal do STJ: a base de cálculo do ITCMD é o valor de mercado
Qualquer argumento remanescente em favor da estratégia foi definitivamente invalidado por uma decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em fevereiro de 2025, a Segunda Turma, ao julgar o Recurso Especial nº 2.139.412/MT, firmou o entendimento de que a base de cálculo do ITCMD na doação de quotas de holdings familiares deve corresponder ao valor de mercado dos bens e direitos que compõem o patrimônio da empresa, e não ao valor patrimonial contábil das quotas.
Esta decisão é crucial, pois ataca o coração da tese das 3 células. Ela confirma que o Fisco tem a prerrogativa e o dever de “olhar através do véu” da pessoa jurídica e exigir o imposto sobre o valor real da riqueza transmitida.
Portanto, de nada adianta doar as quotas da Célula “Destino” por um valor irrisório, pois o STJ já consolidou que o cálculo do imposto deve se basear no patrimônio efetivamente contido na Célula “Cofre”. A estratégia, portanto, não é apenas arriscada; tornou-se juridicamente inútil diante do citado julgamento.
- O risco oculto e devastador: a tributação federal do ágio
Talvez o perigo mais ignorado pelos defensores do método seja uma armadilha de tributos federais. A criação da vultosa reserva de ágio na Célula “Veículo” pode gerar uma obrigação fiscal muito maior do que a economia pretendida com o ITCMD.
A legislação do Imposto de Renda (Decreto-Lei 1.598/77) prevê isenção de IRPJ e CSLL sobre o ágio na subscrição de capital, mas este benefício é restrito às Sociedades por Ações (S.A.). Como a esmagadora maioria dessas estruturas é montada via Sociedades Limitadas (Ltda.) por sua simplicidade e menor custo, elas caem em uma perigosa armadilha.
A Receita Federal do Brasil, por meio de reiteradas Soluções de Consulta (a exemplo da COSIT 134/24), e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) possuem entendimento consolidado de que, para as Limitadas, o valor recebido como ágio é considerado receita e deve ser tributado pelo IRPJ e pela CSLL, a uma alíquota combinada que pode chegar a 34%.
Na prática, a tentativa de economizar uma alíquota de ITCMD que varia entre 4% e 8% pode resultar em uma dívida fiscal federal de 34% sobre a quase totalidade do valor do patrimônio. É uma troca economicamente desastrosa que transforma a suposta solução em um problema de magnitude muito superior.
- A ação coordenada do fisco: “Pperação Loki” e a fiscalização intensiva
Os riscos não são teóricos. Secretarias da Fazenda de estados relevantes, como Rio Grande do Sul e São Paulo, já deflagraram operações de fiscalização específicas contra esses modelos.
A “Operação Loki” da SEFAZ-SP, por exemplo, já em andamento, utiliza o cruzamento de dados da Junta Comercial, cartórios e declarações de imposto de renda para identificar estruturas suspeitas e autuar contribuintes que utilizaram negócios simulados para mascarar doações. A padronização dessas estratégias, disseminadas pela internet, tornou-as alvos fáceis para os algoritmos e a malha fina fiscal.
Conclusão: o caminho para um planejamento sucessório seguro e eficaz
A análise técnica e factual demonstra que o método das 3 holdings é uma construção de alto risco, baseada em premissas jurídicas superadas pela jurisprudência e ativamente combatida pelas autoridades fiscais. A promessa de uma “herança sem imposto” é uma miragem que pode levar à dilapidação do patrimônio que se pretendia proteger.
A verdadeira eficiência no planejamento sucessório não reside em artifícios que beiram a ilegalidade, mas na organização prévia, transparente e estratégica do patrimônio, utilizando os instrumentos consolidados e seguros que nosso ordenamento jurídico oferece.
Alternativas como a holding familiar lícita, estruturada com o propósito real de centralizar a gestão e organizar a sucessão, a doação de bens em vida com reserva de usufruto, o testamento para dispor da parte disponível do patrimônio e o uso de ferramentas de liquidez como seguros de vida e planos de previdência privada (VGBL/PGBL), constituem o arsenal para um planejamento robusto.
Um plano sucessório bem-sucedido não é aquele que busca eliminar o imposto a qualquer custo, mas aquele que garante a transferência do legado de forma segura, com custos previsíveis e controlados, e, acima de tudo, que previne litígios e protege a família de contingências fiscais futuras.
Diante da complexidade do tema, uma análise pormenorizada da situação patrimonial e familiar é indispensável. Nossa equipe de especialistas permanece à disposição para avaliar os impactos específicos de cada caso e desenhar a estratégia mais segura e eficiente para a perpetuação do seu patrimônio.